Suas paredes tem mais de 60cm de espessura. O vento gelado que penetra pelas janelas quebradas corta o saguão. Um odor fétido atesta a autenticidade do lugar. Outros pavilhões já estão reformados e expõe peças pertencente ao Museo Marítimo y del Presidio, mas este, intacto, ainda tem o silêncio ensurdecedor e o chão sujo. Nada mudou em quase 70 anos na prisão do fim mundo.

Não existem relatos de uma única fuga exitosa. Bem por isso, essa foi considerada a prisão mais efetiva do mundo. Alcatraz ficou para trás. Várias tentativas de fugas ocorreram por aqui, embora pouquíssimas bem sucedidas. Escapar do presídio em si não era tarefa muito difícil já que os detentos passavam horas fora da cárcere realizando diversas atividades, mas uma vez do lado de fora, não havia para onde ir. Sem comida, com frio e impossibilitados de acender uma fogueira – a qual o iria denunciar -, o fugitivo acabava por voltar com o rabo entre as pernas e pedir desculpas pela evasão. Na maioria das vezes o pedido de desculpas era aceito, e posteriormente era acompanhado por uma bala. Um a menos.

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Em 1884, dois anos após o tratado de fronteira com o Chile, Ushuaia e o Governo da Província da Terra do Fogo foram fundados, embora ainda sem qualquer habitante. Foi necessária então uma manobra de colonização para garantir a soberania do território. Mas quem, por livre e espontânea vontade, tomaria o rumo para um lugar tão inóspito e desértico? Você acertou, prisioneiros. Resolver o défice de prisão existente no país e ainda garantir que os chilenos não fossem tocar as terras celestes ao sul era matar dois coelhos com uma cajadada só. Bingo!

A Ilha dos Estados é a última perna da Cordilheiras dos Andes e pertence a Argentina. Foi lá, em San Juan del Salvamento, que funcionou até 1889 uma espécie de colônia penal aos militares acusados de assassinato. O clima e o afastamento fizeram daquela ilha inabitável e a situação era insustentável. Em 1902, tomou-se a decisão de trazer a prisão para a Bahia Golondrina. Nascia, dessa vez pra valer, Ushuaia.

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Foram 18 anos para que o edifício estivesse pronto. Os próprios detentos foram os responsáveis pela construção, pedra por pedra. A prisão de Ushuaia era um caixote para onde iriam parar todos os estrangeiros, reincidentes ou qualquer um mal comportado que fosse julgado digno de uma estadia na “terra maldita”. Durante um bom tempo, essa foi a ameaça comum a todos encarcerados. “Seja bonzinho, ou vamos te colocar de castigo mais próximo da Antártida do que da sua família”.

Os prisioneiros eram tratados como animais e receberam punições que muitas vezes pagaram com a vida. Uma vez por aqui, não se sabia por quanto tempo ficariam. O único meio de comunicação com a família eram cartas, censuradas e lidas por carcereiros. Digamos que uma boa parte acabava em uma fogueira. Não havia regras e as sanções internas e punições eram regidas pelo bom humor diário do guarda de plantão.

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A prisão acabou por tornar-se o motor econômico da ilha. Foram os presos que, em suas tarefas diárias, construíram toda infra-estrutura pública. Estradas, pontes, cais, casas, instalação de rede de água, iluminação pública e a manutenção de tudo isso. Basicamente, as bases da cidade de Ushuaia foram erguidas pelo suor dos condenados.
Logo a cárcere se tornaria também o principal fornecedor da população com serviços como padaria, sapataria, alfaiataria e fábrica de macarrão.

O paraíso das hordas de turistas caçadores de nevascas de hoje é resultado do trabalho duro de milhares de pijamas listrados encarcerados como cães nos confins da Terra.

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Sentado à mesa comunitária do hostel onde vivo, diferentes idiomas se cruzam. Costumo brincar que vivemos na cárcere do fim do mundo junto aos outros não turistas. Brasileiros, colombianos, venezuelanos, espanhóis e argentinos de todos os lados vivem por aqui. Somos quase uma família erradicada.

Há poucos viajantes nessa época do ano. Propositadamente ou não, nós os marginalizamos frente à ausência de um diálogo genuíno. Em suas companhias nos colocamos à mercê da frivolidade comportamental. O ritmo e ímpeto de quem vive por aqui bate distinto. E penso que sempre foi assim.

Eu nunca quis vir a Ushuaia. Aconteceu.
Assim como na maioria esmagadora das vezes, foi enquanto planejava um caminho que a vida tratou de recalcular a rota e me enviou a outro lado.

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Ushuaia é sempre o fim de uma longa história; seja para corações combalidos, mentes criminosas ou almas que anseiam por esperança. A nova “El Dorado” de caça tesouros desafortunados que chegam em remessas. Possivelmente se irão com bolsos aindas mais vazios. Uma terra de estrangeiros, onde fueguinos são fotografados como objetos raros sob olhares de descrença. Um santuário de redenção, paz, cifras. Muito provavelmente mais do que uma pausa, um recomeço para uma vida.

Em algum lugar, todos já demonstrávamos desgaste, embora todos pareçam não querer assumir essa realidade. De modo que a estadia em Ushuaia, a princípio, pode servir de pretexto para uma fuga. Cada personagem, a seu modo, busca uma saída, um atalho como antídoto às incompatibilidades que o trouxe ao fim da linha.

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Durante mais de 40 anos, detentos foram enviados para o fim do mundo para ocupar e erguer uma cidade. Quase 70 anos depois, eu cheguei para dar continuidade ao seu trabalho. Dessa vez não fui obrigado a nada, mas as circunstâncias e as imensas promessas dessa terra fizeram o trabalho de auto eleger esse lugar.

Ushuaia continua a ser uma cidade construída a base do sacrifício e esperança das pessoas. Os pijamas listrados em azul e amarelo apenas deram lugar a outros trajes. Durante um período, aqueles que já não se adequam a outras realidades ou almejam uma nova vida acabam por aportar aqui. Ushuaia é um recomeço. Um porto seguro que abre facilmente os braços para novos membros da “família”. Uma terra de todos.

Sentado no terceiro vagão, vou percorrer os últimos 7 quilômetros do caminhos dos presos, aberto para captação de madeira e pedras. Vou adentrar o Parque Nacional Tierra del Fuego embarcado no Trem do Fim do Mundo.

Assim como eu, o guia do trem, que a propósito divide o mesmo quarto comigo no hostel, não tem raíz alguma na região. Ele é apenas outro forasteiro que veio “tocar” Ushuaia. Fazemos graça imitando os antigos presidiários subindo ao trem.

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Eu ainda não havia notado que na verdade tínhamos mais semelhanças com aqueles detentos do que poderíamos supor à primeira vista.

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